Dez meses se passaram da última vez que trilhamos juntos. Somos cinco: Eu (Djair), Daniel, João, Luciano e Wilson unidos pelo mesmo prazer: a natureza. Nossa missão é ir ao encontro dela com nossas cargueiras nas costas percorrendo trilhas, subindo e descendo os mais variados terrenos na busca de belas paisagens. Nosso gosto é pela imensidão dos grandes vales, pelo frio e silêncio das montanhas, pelo nascer e pôr do sol, o brilho das estrelas, é de se sentir pequeno diante de algo maior.
Nosso derradeiro encontro ocorreu na Serra da Mantiqueira, na famosa trilha da Serra Fina, considerado por muitos um dos trekking mais duros, um dos mais difíceis do Brasil. Sei que há controvérsias, mas a verdade é que concluí-la exige muito do corpo e da cabeça; em especial quando a natureza resolve mostrar força mandando a chuva que molha e alaga tudo, e também o frio soprando com toda vontade dos deuses. É pauleira!
Decidimos que nossa próxima história deveria ocorrer na Chapada Diamantina. Planejamos tudo com antecedência. Contratamos um guia especializado no roteiro, compramos as passagens aéreas, reservamos a pousada, o resgate etc. Nossa programação incluía 5 dias para essa travessia num circuito de cachoeiras mais “escondidas”, um conjunto que envolve maior esforço e cuidado: FUNDÃO , VINTE E UM, FUMAÇA DE FRENTE, CAPIVARA, FUMAÇA POR BAIXO, CAPIVARI. POÇÃO E MIXILA. A trilha deveria começar na segunda-feira (27) e ser concluída sexta-feira (31) de março de 2017. Mas nem tudo aconteceu exatamente como esperávamos. Na semana do embarque tomamos conhecimento que nosso companheiro, o João, não poderia realizar a trilha. Não quis o destino que ele nos acompanhasse. Seguimos sabendo que o time dessa vez estava desfalcado. Ele sofreu um corte no pé dias antes e sem a cicatrização necessária se viu impedido. Contudo, mesmo com o ferimento, ele quis ir até Lençóis e lá ficar até nossa volta na sexta-feira (31). Fiel escudeiro seu JOÃO!
No sábado (25), à noite, eu ainda estava fazendo os ajustes na mochila. Confesso que é sempre um “sofrimento” fazer as escolhas certas do que devo ou não levar. Mais coisas significa mais peso, menos mobilidade, maior desgaste físico. Como estava levando equipamento de filmagem, tive que deixar minha câmera fotográfica de fora, sofri com isso porque sou um apaixonado por fotografia de natureza.
Nossa opção de chegar até a cidade de Lençóis foi por via aérea. Todas as quintas e domingos a companhia Azul oferece a opção Recife-Lençóis com escala em Salvador. Às 09h15 do domingo (26) partimos com destino a capital baiana. Lá fizemos conexão em um turboélice para a cidade de Lençóis, que é uma das principais cidades da Chapada Diamantina. O vôo dura apenas 50 minutos e, por volta das 15h, eu, Luciano, João e Wilson já estávamos deixando nossos trecos dentro da Pousada Raio de Sol, que fica bem no centro da bela cidadezinha.
Corremos pra almoçar e encontrar com o parceiro Daniel, que já se estava na cidade desde a quinta-feira (23). Paramos no restaurante da Zilda. Entre uma conversa e outra, na hora do rango, Daniel adiantou ter feito umas trilhas na sexta e sábado e que a Chapada estava passando por um período de seca. Todas as cachoeiras estariam praticamente secas. Algumas, totalmente. Ficamos abismados: Chapada sem água?
No final da tarde, fomos juntos com o nosso guia Marquinhos Soledade (@expediçao_chapada) fazer uma “feira” coletiva. A idéia era comprar tudo que iríamos consumir nos cinco dias de trilhas e ratear os custos e os pesos nas cargueiras de cada um. Compras feitas, voltamos para a pousada. Utilizando uma balança portátil fizemos a pesagem de cada “kit” de modo que cada um recebesse pesos iguais ou aproximados para levarmos à expedição.
Com a idéia de evitar o sol forte, levantamos às 5h30 na segunda-feira. Não pudemos esperar o café da manhã oferecido pela pousada que só sairia às 7h30. Então coube ao parceiro Daniel agilizar nosso rango matinal. Comemos. O guia chegou, o brother João nos levou até o portão, nos saudou e ficou para trás. Às 7h15 saímos pelas ruas de ladeiras do centro de Lençóis com destino ao início da trilha
Os primeiros passos são de adaptação, o corpo precisa se acostumar com os 18 kg, 20 kg nas costas. É sempre assim, e como os músculos estão frios, as articulações também, tudo precisa entrar em sincronia. Aliás, é preciso muito considerar a qualidade da mochila que você escolhe para fazer trekking longos. Ela tem que ser confortável, leve e prática.
PRIMEIRO DIA (27/03)
Sair da cidade para pegar a trilha é literalmente um bom treino de aquecimento. Há uma acentuada subida pelo bairro que te faz lembrar que a brincadeira começou. Entramos na trilha. A cidade vai ficando para trás. O cheiro da mata vai tomando conta do ar. Seguimos nos adaptando aquele terreno. Coração e pulmão são exigidos. A mochila vai se encaixando ao corpo e nesse momento cabe fazer os ajustes das fitas e alças. Seguimos firme. Alguns degraus.
de pedras, árvores verdes, matos. Chegamos ao Mirante de Lençóis uns 30 minutos depois. Pequena parada, algumas fotos. Continuamos e as 9h paramos na Cachoeira do Grisante. O suor já se fazia presente. O calor tomava conta. Sabíamos que não ia ser fácil. Ali paramos e nos refrescamos na pouca água que descia na rocha. Fizemos algumas fotos. Jogamos água sobre nossas cabeças, lavamos braços e sentamos.
Acontece que esse momento trouxe um episódio inimaginável para o grupo. Luciano Rocha aproveitando aqueles instantes de descanso e contemplação se aproximou do grupo e falou que não iria continuar a trilha. Todo, sem exceção, considerou que tudo não passava de uma brincadeira de mau gosto. Mas a repetição da frase nos fez prestar mais atenção – Galera, não irei fazer a trilha! Todos estavam incrédulos. Repetiu: – Não estou na “vibe”, estou com um mau pressentimento… não sinto uma energia boa… Relutamos, argumentamos. Ele continuou firme. Lembrou que quando sente isso não costuma desacreditar nos instintos. Disse que não se sentia bem. Ficamos parados, boquiabertos. Ele abriu a mochila, tirou o “kit” com parte da “feira coletiva” entregou ao grupo. E, como quisesse se livrar de tudo aquilo, se virou, desejou sorte e retornou pela trilha sozinho até perdermos ele de vista. Não foi fácil entender. Agora éramos 3 na missão: Eu, Daniel e Wilson. Seguimos calados, mas esse episódio abriu nossos olhos para algo misterioso que ocorreu nesse trekking.
Nossa meta era a Cachoeira do Fundão. Depois de quase 2 horas de caminhada paramos às 10h50 às margens do Rio Ribeirão (Vale do Ribeirão). O volume não era dos grandes. Algumas piscinas. A água gelada nos convidou para um bom banho. Escutamos algumas histórias de Marquinhos. Tomamos conhecimento que há um espanhol desaparecido naquelas trilhas desde dezembro de 2015 e que até hoje ninguém tem notícias, apesar das inúmeras buscas empreendidas por voluntários e Corpo de Bombeiros com utilização de cães farejadores. O que terá ocorrido? Estaria ainda vivo? Será que fora ele arrastado por uma tromba d’água? Será que caiu em um abismo?
No Vale do Ribeirão fizemos um bom lanche: pão com pasta de atum com cenoura. Recarregamos os reservatórios de água. Energias renovadas, continuamos. A entrada no Cânion do Fundão me deixou maravilhado. Repeti inúmeras vezes em alta voz e no pensamento como era bonito tudo aquilo. Muito verde, muitas pedras. Dá pra ver a força das águas nos cortes entalhados naquelas paredes colossais de milhares de anos. É um caminho por entre pedras. Aliás, é um desafio porque há sempre o risco de lesão. O esforço e atenção são grandes em especial com o peso que carregamos. O resultado do esforço físico trouxe, minutos depois, câimbras para o companheiro Wilson e assim às 13h25 paramos um pouco pra ele se recuperar. Nossa pausa revelou os mosquitos que atacam sem cerimônia, até mesmo por cima das camisas. Dessa forma até as câimbras do companheiro sumiram.
Depois de percorrer um longo caminho dentro do Cânion do Fundão, por entre muitas e muitas pedras alcançamos a Cachoeira do Fundão. Pra ser sincero, não estávamos diante exatamente da cachoeira, mas sim da queda por onde deveria descer a água. Era então apenas um cânion retalhado.. A beleza é indiscutível. Mas não havia o barulho de águas caindo, não havia. Deve ser lindo vê-la transbordar. Agora só restava a imaginação. Diante dela fiquei tenso em saber que o local de acampamento é no topo e que teríamos que escalar. Acredito que deve ter uns 90 metros. Senti muito medo mas seguimos. Eu com maior tensão que os outros. Embora enfrente a altura confesso ser um desafio pessoal. Daniel seguia acompanhando de perto o guia, eu em terceiro recebia suas orientações e ajuda quando “travava”. Wilson, logo atrás, registrava tudo com uma GoPro colada ao peito. Adrenalina a mil. As imagens não nos deixam mentir.
Foi muito dura aquela escalaminhada. Eu diria que imprudente também. Deveríamos ter tomado o caminho mais seguro e não o mais rápido. Mas deu tudo certo e dentro do programado descansamos no chão as mochilas e montamos as barracas. O local fica uns quatro metros acima do leito do rio numa área com vegetação batida. O guia não levou barraca e como bom baiano esticou uma rede entre duas árvores. Havia mosquitos. Muitos. Marquinhos tenta afastá-los com uma fumaça produzida com muito cuidado sobre uma pedra e algumas folhas verdes. Deu certo. Montamos as barracas. Marquinhos passou a cozinhar usando 2 fogareiros. Às 17h20, a comida estava pronta. O menu: macarronada e linguiça defumada. Comemos maravilhosamente.
Chega noite e ela se apresenta deslumbrante com o céu repleto de estrelas. Dentro da barraca um calor grande. Deduzi que o guia Marquinhos iria dormir melhor ao ar livre. Aproveitando a beleza da noite, abandonou a ideia da rede e colocou o isolante térmico diretamente no chão perto da fogueira, deitou olhando para o alto e passou a identificar o que via no céu. Daniel fez o mesmo e falava da beleza de tudo aquilo. Eu, dentro da barraca, escrevia esse diário, mas queria mesmo era dormir. Saí em seguida para contemplar aquele momento raro de total escuridão e beleza estrelar. Passei não mais que 10 minutos. Voltei para a barraca, torci para que o cansaço me tomasse e eu apagasse. Mas não foi bem assim.
SEGUNDO DIA (28/03)
A noite não foi das melhores. Acho que dormi no máximo três horas. Acordamos às 5h30, tomamos o café da manhã e logo desmontamos o acampamento para seguir até a Cachoeira Vinte e Um, que fica bem próxima a do Fundão. Belo paredão forma a Cachoeira 21, mas esta também se apresentou sem o esplendor da água caindo. Olhamos para ela e Marquinhos nos apresentou o caminho para chegar ao topo. Seguimos e nos deparamos com uma passagem bem exposta. É preciso cautela. Há uma chance das coisas darem errado e terminar muito mal. A visão do topo que temos do cânion é deslumbrante. Conversamos um pouco lá no alto sentindo toda aquela energia e brincamos com o eco de nossas vozes em meio aos paredões.
Deixando a Cachoeira 21 pra trás, tomamos o terreno do Córrego Verde . É um lugar bonito que parece cenário desses filmes de gnomos. Há muitas pedras, muitas árvores atravessadas no caminho, resultado de trombas d’águas e do incêndio que ocorrera meses atrás que fragilizou as árvores das encostas. Às 10h50 paramos para descansar um pouco no final do Córrego Verde. Cabe dizer que transpor todo terreno é muito duro. Agora já está claro que essa trilha exige muito do condicionamento e da atenção. Andar sobre pedras aumenta o risco de dobrar o pé, de ter lesões sérias que podem comprometer a expedição.
Interessante é que nesse percurso deveríamos abastecer nossos reservatórios em um local apropriado, com água potável, mas pra nossa surpresa esse ponto estava seco. Tivemos então que racionar água. A essa altura, saindo do córrego verde, nos deparamos com o sol forte e a necessitar ainda mais do precioso líquido que começava a acabar.
Seguimos a trilha e depois de longa jornada estávamos diante da imensidão, da grandeza e da beleza do cânion onde fica a Cachoeira da Fumaça. Profundo cânion, majestoso cânion. São 400 metros de abismo. Paramos. Olhamos em direção de onde deveria ser a Cachoeira da Fumaça, com seus 380 metros de queda, mas só havia o paredão. Nada de água. Do Mirante da Fumaça de Frente descobrimos que a seca roubou parte da beleza cênica que eu esperava encontrar. Foi frustrante. Pela primeira vez colocamos em pauta a idéia de não descer e fazer a Fumaça por Baixo, haja vista não existir queda d’água. Seria um esforço sem grande recompensa. Ainda assim contemplamos brevemente tudo aquilo e seguimos para alcançar a Serra do Palmital. A essa hora já estávamos muito desidratados. Passamos um longo período não ingerindo a quantidade de líquido que o corpo perdia durante a caminhada sob o sol. Não podíamos ficar muito tempo ali.
Seguimos em frente. O sol de rachar. Calor infernal. Nossa chegada ao Rio Palmital, mais uma vez, evidenciou a grande seca que assola a chapada nesses dias. Mortos de calor e sede, corremos para se refrescar em alguns pontos de água parada. Já passava das 13h quando decidimos ficar uns instantes na área verde e com sombra chamada de “acampamento da Cachoeira do Palmital”. Tudo seco. Nessa altura do campeonato Marquinhos, o guia, confessou que aquele calor o fazia mal. Demos mais um pouco de nossa água a ele. Cheios de determinação seguimos em direção a Cachoeira da Capivara.
No caminho, saímos da trilha para abastecer os reservatórios. Marquinhos nos levou até um oásis, que fica à esquerda da trilha. num paredão de onde a água fria e límpida descia encosta abaixo. Com auxílio de uma folha imitando um funil tentávamos facilitar o enchimento das garrafas e camelbak. Depois seguimos e já às 14h estávamos na cachoeira. Com pouca água caindo, tiramos as roupas e fomos tomar banho e fazer fotos. O lugar é deslumbrante. O local onde cai a água forma um lago profundo de água escura. Aliás, sinto falta do movimento das águas. Tomamos muito banho. Estávamos esturricados. A sede parecia não acabar.
Marquinhos preparou arroz com lentilha, farofa, e lingüiça defumada. Espetáculo. Enquanto preparava a comida, notamos que uma cobra estava bem próximo. Ela bebia água a uns 3 metros do grupo. Era uma Cobra Cipó, que num silêncio sinuoso partiu pra dentro das rochas e sumiu. Comemos e subimos pelo lado direito com nossas coisas para área onde iríamos montar acampamento para passar a noite. Deixamos as mochilas numa grande pedra que parece uma mesa. E fomos procurar madeira seca no leito do rio pra fazer uma fogueira sobre as pedras para afugentar bichos e mosquitos. O fogo foi aceso e jantamos a sobra do almoço com algumas adaptações feitas por Daniel. Show de bola garooooto!.
Eu, Daniel e Wilson resolvemos “copiar” Marquinhos e dormir sob o manto das estrelas. Não iríamos armar nossas barracas. Sobre a grande pedra, lado a lado colocamos nossos isolantes e sacos de dormir. Aproveitamos e numa conversa reiteramos que não era interessante fazer a Fumaça por Baixo, já que ela se apresentava sem água como havíamos testemunhado no mirante de frente. Deitamos. Passei a ficar cismado com a imagem da cobras. Liguei a lanterna. Desliguei. Liguei outra vez, deixei ligada. Via Marquinhos de tempo em tempo levantar para alimentar o fogo. Wilson se revirava. Apaguei depois e nem sei quanto tempo. Contudo, exatamente às 3h da madrugada gotas de chuva tocavam nossos rostos e de sobressalto nos pomos a agilizar a fuga e buscar abrigo no corte do cânion . Mudamo-nos com tudo e fomos dormir embaixo de uma parede curvada da rocha do cânion. A chuva chegou de vez e não parou até amanhecer. Noite terrível.
TERCEIRO DIA (29/03)
Às 8h10, o guia Marquinhos ainda preparava o café da manhã. Comemos ali embaixo no paredão, abrigados. Estávamos no topo da Cachoeira da Capivara, que apesar da chuva constante durante a madrugada não teve o volume aumentado de modo considerável. Mastigamos cachorro quente com café e leite em pó e, às 10h, descemos pelo leito do Rio Capivara: pedras, pedras, pedras gigantes, molhadas, escorregadias. Há riscos claros de torção e queda. Natural redobrar as atenções. Seguimos o rio por dentro do cânion até o encontro do Rio Capivari e seu belíssimo cânion.
A chuva fina nos acompanhava. Medo de escorregar traz tensão. A caminhada, ora por dentro do leito, ora pelas margens onde temos que subir e descer encosta, pular troncos, se agachar, subir outras pedras marginais, afastar galhos, isso tudo consome muita energia e a sede é grande. Depois de longa e exaustiva jornada, passamos pelo Córrego da Muriçoca, onde lavamos o rosto. Todos, apesar da chuva, suavam incessantemente devido ao caminho árduo.
Nuvens pesadas, criavam sobre nós um cenário tenebroso e também bonito sobre nossas cabeças. Subimos a interminável Serra do Capivari. Uma subida íngreme com areia preta e vegetação típica. A inclinação é das grandes e seu corpo vai sentir, e pra ser redundante digo que é bem dura em especial devido ao peso das cargueiras. No topo da serra paramos, fizemos outros registros aproveitando as cenas das nuvens pairando sobre o grande cânion, depois seguimos.
Tomamos a trilha e decidimos ir direto para Cachoeira do Capivari. Deixamos as cargueiras na parte de cima da cachoeira e descemos sem nada. Só pra tomar um banho e vê-la. Deve ter uns 70 metros o paredão. Apesar do volume da queda acho que até o momento é a que mais me chamou atenção. Belíssima Capivari. Eu e Daniel entramos na água. Wilson ficou filmando. Mergulhei . Tomei um tombo que fez uma ferida na canela. Passamos apenas uns 40 minutos lá e subimos. Agora deveríamos seguir para a Cachoeira do Poção.
Não chovia. O tempo permanecia nublado, pesado ameaçando mandar chuva a qualquer momento.. Seguimos o leito do Rio Capivari. Confesso que todo aquele terreno já estava me irritando. Leito de rio, pedras. Pula, sobe, desce. Depois de algumas horas chegamos à Cachoeira do Poção que também se apresentava com pouco tímida queda d’água. Pela margem direita alcançamos o topo. Deixamos o material pra fazer o almoço com Marquinhos do lado direito e fomos pra o lado esquerdo onde há um espaço em terra batida bom para acampar. É um lugar seguro. Difícil ser surpreendido por uma tromba d’água .
Ali o terreno estava molhado. Tudo molhado. Armamos as barracas e separamos material pra fazer uma fogueira. Era um lugar absolutamente seguro para produzir fogo, em cima de uma Rocha sem contato com a vegetação de modo a evitar um incêndio. Não tivemos êxito. Por mais de 1 hora tentamos. Suamos e desistimos. Descemos pra almoçar. O melhor almoço do mundo. Arroz, farofa e charque com tomate. Minha nossa!!! Comida de verdade. Na trilha também comemos bem.
Tomamos banho no rio e já à noite por volta da 20h, descemos pra ficar conversando com o companheiro Marquinhos, que iria bivacar na margem direita do rio que alimenta a Cachoeira do Poção. Saí da barraca com uma lanterna de mão pra emprestar para ele e com a minha de cabeça presa à testa. Daniel e Wilson também foram e lá tomamos um chá de hortelã. Sugeri que apagássemos as luzes pra sentir a noite e ter o som da água que corria. Daniel tava confortavelmente deitado. Eu , Wilson e Marquinhos, sentados. Conversamos sobre várias coisas. Soubemos que ali mesmo onde estávamos quase ocorrera uma tragédia com um grupo de amigos de nosso guia. Contou ele que, certa vez, percebendo o volume da água aumentar pediu para que todos buscassem abrigo, mas alguns duvidaram e foram surpreendidos instantes depois por uma enorme tromba d’água que por pouco não acabou com a vida dos mesmos, mas que resultou em ferimentos sérios em um deles.
Bateu sono. Disse que iria me recolher. Wilson falou em me acompanhar. Daniel titubeou , mas decidiu vir conosco. O guia ficou lá e atravessamos o leito em direção às barracas. Cada um entrou na sua e uns 8 minutos depois escutamos um grito, um alerta distante. Era Marquinhos!! Ele gritava: – Tromba d’água (embora o barulho e a distância não nos deixasse saber o que exatamente ele bradava). Abrimos o zíper de nossas barracas, corremos com lanternas pra beira ao mesmo tempo e notamos o que era. O rio estava recebendo uma grande quantidade de água repentinamente. O guia do outro lado da margem iluminava uma rota de fuga pra ele. Do nosso lado, estávamos mais seguro. Ainda não era necessariamente uma tromba d’água, mas seu prenúncio. Era certo que ela estava vindo. Filmamos esperando o momento exato de registrar a água arrastando tudo. O volume agora era outro e constante.
Buscamos uma comunicação verbal com o guia, mas o barulho da água impedia total compreensão. Depois de alguns minutos ali vimos Marquinhos se alojar na parte mais alta sob um corte do cânion de modo a evitar ser levado pela água caso, de fato, um enorme volume chegasse de modo rápido. Com todos em segurança voltamos pra tentar dormir. Logo após entrar na barraca, a chuva castigou insistentemente. Apaguei e posso dizer que foi a melhor noite que tive. Feliz com essa proeza.
QUARTO DIA (30/03)
Despertei às 5h com o barulho da chuva sobre a barraca. O som da chuva faz você ficar preocupado com a resistência do equipamento. Por incrível que pareça nenhuma gota de água adentrava. A essa altura o “piso” da barraca estava inflado pela água que se acumulava no piso. Parecia um colchão de água. Destaco o modelo pela relação custo/benefício (Barraca Nord – 2 lugares) e que por sinal é também a mesma que Daniel usava. Wilson utilizava uma diferente e não teve a mesma sorte já que teve o interior invadido pela água da chuva.
Às 7h30 da manhã, a chuva ainda persistia. Não tínhamos ideia de como seria nosso dia. Já era chuva demais. Será que iríamos manter o cronograma? O plano era ir até a Cachoeira do Mixila naquele dia. Wilson aproveitava os intervalos da chuva para organizar as coisas. Daniel e eu não saíamos. Parecia que teríamos que rever os planos do dia. O tempo continuou fechado. Cinza. Tomamos café já bem tarde num ponto mais elevado do cânion onde Marquinhos dormiu. Um café da manhã fraco: só pão e queijo. Depois seguimos para desmontar o acampamento que estava emporcalhado, sujo com tanta água que caiu.
O tempo era ruim. Parecia que o mundo estava prestes a se acabar em água. Nosso guia e amigo Marquinhos Soledade narrou que havia chances enormes de deparar com uma tromba d´água. Ir até a Mixila parecia arriscada. Ele, com experiência e segurança, apontava na direção de onde a chuva parecia cair com maior força no horizonte e é lógico que ela deveria chegar no leito dos rios e, certamente, de forma repentina O prelúdio que já havíamos presenciado na noite anterior, era uma evidência dos riscos.
Nesse contexto coube uma conversa franca. Eu coloquei que pra fazer a Mixila sob riscos era melhor não prosseguir. Daniel e Wilson assinalaram que para eles o prejuízo era menor uma vez que ambos já conheciam a cachoeira, eu não. Mas sem vaidade assinalei que não fazia questão sob aquelas condições. No fundo gostaria de seguir, mas não era mesmo razoável. Dessa forma consideramos que nossa Expedição estava encerrada. Restava o caminhos de volta. Era a despedida de uma aventura programada para ser vivida em cinco dias pelos 5 amigos do grupo, mas que estava sendo concluída apenas por três e com 1 dia a menos. Foi como Deus quis. Interessante é que desistimos de duas cachoeira (Fumaça por Baixo e Mixila) por motivos antagônicos: falta e excesso de água, respectivamente.
Já era mais de nove da manhã quando tomamos à trilhas de volta. Deveríamos conseguir uma área com sinal de celular pra ver se o resgate que contratamos para nos apanhar na sexta (31) poderia nos pegar no local marcado só que 1 dias antes. Seguimos a trilha para sair da Cachoeira do Poção. O terreno não é tão duro quanto andar pelos leitos dos rios. Não há pedras pra ficar pulando e há um bom trecho reto com terra batida. A descida complicada ocorre pela Serra do Bode, que o declive cria condições para grandes escorregões e acidentes se não estiver atento. Depois de algumas horas alcançamos área com sinal de celular. Wilson conseguiu fazer contato com Carlos, dono da Toyota, que sinalizou ser possível seguir e nos apanha lá embaixo. Ufa! Boa notícia. Isso nos pouparia de ter que andar 8 km até Lençóis.
Aproveitando o sinal de internet, eu e Daniel sacamos nossos smartphones e vimos as mensagens de nossas redes sociais “carregar” velozmente na tela, afinal, foram quatro dias desconectados. Eram mensagens do trabalho e familiares. Eu não recebia tantas, mas Daniel falou rindo ter mais de mil. Não era o momento e nem havia tempo de ler nada. Eram a centenas que Daniel recebeu no whatsapp havia um recado deixado por sua mãe que iria aumentar o aspecto místico dessa trilha. Guardamos os aparelhos. Tínhamos alguns minutos de caminhada ainda até cruzar o sítio de Gyodai e chegar no ponto de encontro com Carlos.
Apressadamente continuamos a descida. Finalizada a Serra do Bode, entramos por entre sítios de nativos. Latidos de cães mostravam que estávamos em área privada e dessa forma encontramos com o tal Gyodai na sua propriedade e seus 5 cachorros. No caminho mais fácil e plano Daniel tomou um tombo e quase torceu o pé, mas ele se levantou e seguimos. Chegamos no local de encontro e mal dando tempo de colocar as cargueiras no chão escutamos o barulho do motor do veículo 4×4 que se aproximava. Carlos agora nos levava de volta para Lençóis. Chega de peso, precisamos agora de um banho, um bom almoço caseiro e descansar da longa jornada.
O CONTEÚDO DA MENSAGEM
Na tarde da sexta-feira (31) estávamos Daniel e eu na casa de Marquinhos quando a mãe de Daniel, do Recife, liga para ele e emocionada diz ter enviado uma mensagem via whatsapp na quarta (29), às 4h49, e que até o momento não parecia visualizada. Pelo telefone, agora, ela pedia pra que ele lesse a mensagem depois, mas adiantou que o seu conteúdo foi redigido após um pesadelo aterrador em que todos éramos varridos por uma “onda branca” e lançados contra grandes pedras. No sonho, seu filho era o primeiro a sofrer naquela tragédia. A conversa toda pôde ser ouvida por mim e pelo guia Marquinhos, já que Daniel, atônito, quis compartilhar tudo pelo viva-voz do aparelho. Todos ficamos abismados e as lágrimas, nenhum dos três, conseguiu evitar. Foi muito tenso ouvir aquilo, coisa de filme. Existe premonição?
Daniel pôde, depois, entrar no whatsapp e verificar que a mensagem existia. Ela estava lá: “… CUIDADO DANIEL, VOCÊ ENFRENTA PERIGO, NÃO PROSSIGA… NÃO SEI O QUE É MAS VOCÊS CORREM PERIGO…” (quarta-feira, 29 de Março às 4h49). Agora não restava mais dúvidas que algo místico tinha nos acompanhado durante a trilha.
Interessante é que foi exatamente da quarta-feira às 3h da madrugada que tivemos os primeiros sinais de chuva na Chapada Diamantina. Estávamos na Cachoeira da Capivara quando saímos às pressas, fugindo das chuva, indo buscar abrigo sob a parede do cânion. Talvez esse horário tenha sido o mesmo em que a mãe de Daniel tenha despertada apavorada.
Tudo que relatei, acho que tá bem claro, indica que a questão meteorológica definiu os rumos de nossa expedição. Afinal, foi o risco de ser surpreendido por uma tromba d’água que motivou nossa desistência da Cachoeira da Mixila.
Como se explica isso? E o sentimento de Luciano? Que afirmou pra todos ouvir que não continuaria a trilha, pois estava sentindo uma energia ruim, um “mau pressentimento” que o fez literalmente abandonar o grupo e voltar sozinho? E sem falar no caso de João que com um corte inusitado no pé se viu inacreditavelmente impedido de colocar as botas para fazer a trilha com o grupo? Tudo isso pra cada um de cinco membros faz muito sentido agora.
Essa trilha foi diferente. Até breve amigos!!!
PS1.: No dia 14 de abril, doze dias depois que saímos da trilha, um guia local encontrou uma mochila impermeável com pertences do espanhol HUGO FERRARA TORMO de 27 anos. Nela além de alguns equipamentos eletrônicos havia um passaporte bem como uma espécie de diário da trilha. A partir dos manuscritos deixados foi possível ter conhecimento que ele sofrera um acidente grave ao cair de uma cachoeira que comprometeu sua capacidade de andar.
No dia 11 de maio, de posse dos relatos, bombeiros e guias refizeram os passos do rapaz e num ponto entre Cachoeira da Fumaça e a trilha para a cachoeira 21, se depararam com uma ossada que, ao que tudo indica, seja os restos mortais de Hugo Ferrara Tormo de 27 anos. Exames de DNA devem encerrar as duvidas acerca da identidade daquele material.
PS2: ESSA TRILHA NÃO É BRINCADEIRA