O primeiro sentimento que vem à tona quando se fala na Serra Fina é a lembrança das aulas de geografia nos tempos de escola, afinal ela é uma seção da tão falada Serra da Mantiqueira, uma das mais importantes cadeias montanhosas do Brasil, que atravessa 3 estados, Minas Gerais, São Paulo e Rio de Janeiro. Daí vem o seguinte sentimento: união. Considerado um dos trekkings mais difíceis do Brasil por conta dos 33 km de sobe e desce intenso, clima instável de montanha, neblina e somente 4 pontos de água ao longo do percurso, é fundamental unir o físico ao psicológico, unir-se à montanha e aos companheiros de desafio. Caso contrário, a travessia pode se tornar impossível de ser vencida.
Quatro aventureiros de Pernambuco e um de Sergipe formaram um grupo de trekkers para realizar a travessia em maio deste ano. A MENSCH acompanhou a aventura (uma pena que de longe) e conversou com Daniel Pereira, 36 anos, servidor público estadual, Djair Pedro da Silva, 41 anos, funcionário público estadual, João Fernandes Neto, 40 anos, funcionário público federal, Luciano Rocha, 43 anos, gerente de vendas e Wilson Albuquerque, 50 anos, funcionário público federal, para conhecer mais sobre a travessia e sobre a emoção de realizá-la.
A jornada começou antes da viagem com preparo físico e simulações, como subir e descer 20 andares de escada com 15kg nas costas. Fizeram trilhas por Pernambuco para testar equipamentos, simular as situações de camping, como cozinhar no mato, fazer as necessidades fisiológicas, meios de higiene pessoal sem uso de água e, claro, organizar as mochilas de modo a não sobrar, nem faltar nada, mantendo um peso adequado pra carregar sem muito sofrimento e sem comprometer o desempenho da subida. De Recife voaram até o Rio de Janeiro para então seguir de carro à cidade mineira de Passa Quatro, local de saída para a montanha. Passa Quatro é quase uma viagem no tempo com sua “Maria- Fumaça” desfilando pelos trilhos e encantando moradores e turistas. Difícil imaginar que essa cidade tão bucólica no sul de Minas Gerais é o ponto de partida para a radical Travessia da Serra Fina. Mas como também é o ponto de chegada, muitos trekkers podem descansar em suas águas termais, rios e cachoeiras e se deliciarem com a culinária mineira, além de adoçar a vida com as deliciosas geleias caseiras.
Até chegar a Passa Quatro os nossos aventureiros dirigiram pela Via Dutra e por parte da Estrada Real. O termo Estrada Real surgiu nos tempos do Brasil Colônia e se referia a qualquer via terrestre aberta àquela época no intuito de controlar o escoamento da produção do interior para o litoral, possibilitando o monitoramento da circulação de riquezas, principalmente o ouro extraído de Minas Gerais. O percurso completo contempla 177 municípios, desses, 162 estão em Minas Gerais e os demais entre o Rio e São Paulo. São mais de 1632 km de extensão que resgatam tradições e contam muito da nossa história, além de oferecer ao longo do caminho belas paisagens e diversos atrativos culturais.
DIÁRIO DA TRAVESSIA
Para tentar viver por essas páginas as experiências que Daniel, Djair, João, Luciano e Wilson sentiram durante a Travessia da Serra Fina, vale reforçar que ela tem um dos maiores desníveis topográficos do Brasil, como se você estivesse subindo e descendo escadas de degraus altíssimos o tempo todo, já que são mais de 2200 m do topo da Pedra da Mina até a base da Serra no lado paulista (Vale do Paraíba). Aliás, a Pedra da Mina é a quinta maior montanha do nosso país, com 2.798 m e ainda tem o Pico dos Três Estados com 2.665 m, onde se unem as divisas de Minas, Rio e São Paulo. Cansou? Eles também, mas sem desistir de viver e ver paisagens belíssimas como um mar de nuvens abaixo de seus pés.
A celebração do grupo começou no aeroporto do Galeão ao se encontrar, já que se dividiram em dois voos. Depois pegar estrada por três horas, brindar, agradecer um sonho prestes a se realizar e dormir (tentar, já que a ansiedade era muita) para no dia seguinte encarar a travessia.
Saíram da pousada da Tia Ana por volta das 8h20 e às 9h15, junto ao guia contratado, estavam iniciando o trekking com destino ao Capim Amarelo. O primeiro dia costuma ser cheio de gás. Conversa-se muito, a adrenalina está a mil, mas a subida é dura e o corpo ainda está se acostumando com o peso da mochila, com o terreno e o clima, e as reações dessa aclimação são variadas. Djair, por exemplo, chegou a alertar o grupo que não estava se sentido muito bem, mas logo se estabilizou e a meta do dia foi cumprida. Antes do cume, passaram por um dos cartões postais da Travessia que é a Crista do Passo do Anjo, uma passagem estreita que de cara mostra o quanto somos pequenos diante da Mantiqueira. Luciano tinha o passo mais apressado, o que acabou rendendo lindas imagens da caminhada dele pelos companheiros que vinham depois. Falando em imagens, claro que equipamento não faltou. Desde a Gopro de Wilson à câmera profissional de Djair (trocada pela dormida na barraca junto com Luciano pra equilibrar o peso) além das câmeras amadoras e celulares dos demais.
Nasce o dia. Levantar acampamento, saborear um café da manhã reforçado (acreditem, tinha até tábua de frios e tanta tapioca que chegou a sobrar, mesmo uns regulando e outros comendo demais) e partir para o desafio do dia; o Pico da Pedra da Mina. O gás do dia anterior foi substituído pelos momentos em que caminhar era impossível por conta da chuva e dos ventos fortíssimos, além dos famigerados bambus monstruosos que pareciam estar ali para impedir a travessia (assim mesmo, com esse exagero todo!) “agarrando” os mochileiros. Nesse momento os cajados fizeram diferença e o corpo já acostumado com as mochilas (mais leves de comida) ajudou bastante. O guia sugeriu acamparem ao pé do Pico, pois subir seria arriscado e a meta do dia acabou sendo substituída pela segurança do grupo. A intimidade com a montanha começava a acontecer, a ansiedade virou calmaria e a rotina estressante do dia a dia ia desaparecendo para dar lugar à contemplação e à gratidão.
Outro dia começa e o desafio é chegar ao Vale Verde passando pela Pedra da Mina. O sobe e desce dificulta a comunicação com o “mundo externo” e as ligações e mensagens para familiares e amigos são raras, mas quando acontecem são carregadas de emoção. Muita gente “viajou” junto com os meninos sendo levados no coração. Os momentos de reflexão são muitos e os questionamentos da vida afloram. A chegada ao topo da Pedra da Mina foi celebrada com um abraço coletivo e muito choro. No Livro do Cume nossos aventureiros registraram suas vitórias e escreveram seus depoimentos. Esse terceiro dia foi bem difícil, a chuva intensa deixava as mochilas e roupas pesadas e as rajadas de vento chegavam a empurrar os trilheiros e como se não bastasse, muita neblina que impedia uma boa visão do caminho. A descida foi dura e perigosa, solavancos de vento, pedras molhadas, caminho escorregadio e à frente o Vale do Ruah e seus perigos por conta dos altíssimos capins que fecham a trilha (são tão fortes, apesar de flexíveis, que se senta neles como se fossem cadeiras) e do chão que fica encharcado em dias de chuva.
O guia, perito na travessia, chegou a ficar desorientado quanto ao caminho por conta do cinza da neblina que tomava conta de tudo. Acabaram “sendo salvos” por uma janela no céu que o permitiu encontrar o caminho. Houve outro “encontro” com os bambus do dia anterior pra aumentar o perrengue da travessia, mas ao fim da tarde chegaram ao acampamento. Para uns, momentos de descanso, para outros, a agonia continuava. Mesmo com capa de proteção e roupa impermeável, a chuva foi mais forte e molhou parte do equipamento de Luciano e também de João, incluindo o saco de dormir. Mas é justamente nas atribulações que os grandes companheiros se fazem. Como estavam dormindo na mesma barraca, Djair abriu seu saco de dormir para que servisse a ele e Luciano, enquanto o guia William e Daniel cederam uma manta extra aos três para que se mantivessem aquecidos na noite fria, provando que a união é primordial para a sobrevivência na montanha. É bem verdade que Luciano não dormiu, mas com ajuda de um remédio Djair acabou tendo a melhor noite de sono daqueles dias.
De pé para o último dia, os trekkers saíram por volta das 9h com destino ao Sítio Pierre, o final oficial da travessia. A vontade de concluir a jornada deu de encontro com uma subida íngreme, neblina que impedida deslumbrar qualquer passagem e um possível cansaço que intervinha no humor do grupo. No alcance do Pico dos 3 Estados, encontro das divisas de Minas, Rio e São Paulo, houve momentos de estresse entre Daniel e o restante do grupo. O restante da caminhada tinha um clima pesado no ar, mas em uma das paradas veio o pedido de desculpa e a paz voltou a reinar. Uma grande lição da montanha é a humildade.
Pra quem achava que agora era só chegar ao final, ledo engano, ainda havia muito sobe e desce e os bambus infernais, mas que de tanto se deparar com eles já estavam se tornando amigáveis. Com o passar da caminhada a trilha foi ficando mais “tranquila” e os meninos apressaram tanto o passo que pareciam mais disputar uma corrida de aventuras, até que Wilson solta: “Estamos disputando o que mesmo?”. A risada correu solta, os passos foram diminuindo de ritmo e os primeiros fungados de choro começaram a ser ouvidos. Houve um grito: “conseguimos (palavrão que não cabe neste conceituada revista, mas tem tudo a ver com a sensação do grupo)! “Eles haviam concluído a travessia mais difícil do Brasil, viajaram pra dentro de si, sentiram dores e alegrias, recordaram e planejaram, lembraram de familiares que estão distantes, como relatou Djair, superaram medos, aumentaram a fé, avaliaram decisões importantes em suas vidas e ainda precisaram caminhar mais alguns quilômetros até a BR 354 em Itamonte para serem resgatados até Passa Quatro. E nunca mais vão esquecer tudo o que viveram e aprenderam com a montanha.
Resumo do percurso
Período de travessia: 15 à 18/05/2016
Total de Quilômetros percorridos: 35,1Km
Total de horas percorridas: 31h13m
DESTINOS ALCANÇADOS EM DIA DE TREKKING:
– DIA 1
Travessia na Toca do Lobo – altitude de cerca de 1.558 metros
Destino ao Pico do Capim Amarelo (2.392 metros).
Início: 8h20 – Término: 17h28 – Total de 8h03 incluindo parada para descanso e alimentação.
Passagens: Crista do Passo do Anjo, cartão postal da Travessia onde a trilha chega a ter menos de um metro de área com grandes declives laterais e por ser descampado, fortes rajadas de vento.
– DIA 2
Destino: Pico da Pedra da Mina (2.798 metros)
Início: 9h30 – Término: 17h03 – Total de 7h33 incluindo parada para descanso e alimentação
Passagens: acampamento do Maracanã, a maior área de camping da travessia.
Nota: O mau tempo não permitiu a conclusão do percurso e os trekkers acamparam ao pé do Pico da Pedra da Mina.
– DIA 3
Destino: Acampamento do Vale Verde.
Inicio: 8h52 – Término: 16h56 – Total de 8h04 incluindo parada para descanso e alimentação
Passagens: Vale do Ruah, onde está a nascente mais alta do país, formando labirintos com seu sinuoso capim que ultrapassa a altura do rosto.
Nota: O Pico da Pedra da Mina foi vencido, celebrado e registrado no Livro do Cume que lá se encontra.
– DIA 4
Destino: Sítio do Pierre – lugar oficial da Travessia e BR 354 em Itamonte para dar início à volta a cidade de Passa Quatro.
Início: 09h11 – Término: 16h47 – Total de 7h36 incluindo parada para descanso e alimentação e claro, a celebração pela conquista.
Passagens: Pico dos 3 Estados (2.665 metros), Alto dos Ivos (2.523).
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Texto de Nadezhda Bezerra